terça-feira, setembro 13, 2011

Francisca

As tardes de Domingo com a família de Francisca eram sempre uma verdadeira tortura.

Cumprindo um ritual semanal, toda a descendência se encontrava na casa da sua avó, a matriarca, que aos 82 anos continuava a fazer o almoço dominical ela mesma.

Francisca era a mais nova das primas e a única que continuava a não levar namorado para os encontros semanais. Depois, foi a única que não ficou noiva, a única que não casou e a única que não engravidou pouco depois do casamento.

À medida que o tempo passava, as atenções da família, em particular das mulheres da velha guarda da família, viravam-se dolorosamente para ela, com os comentários de pena e recriminação:

"Mas quê, filha, não consegues arranjar um namorado, é?"

As explicações culpabilizantes:

"Também, não te arranjas! Sempre com esse cabelo todo despenteado... Podias por uma corzinha na cara, filha... Que assim eles não olham para ti..."

"Se não fosses tão esquisita..."

No princípio, Francisca respondia, dizendo que não lhe dava jeito fazer as coisas que lhe prescreviam. Mas com respostas do tipo:

"Depois admiras-te de ficares muito tempo encostada"

Em breve desistiu. Aguentava em silêncio os comentários e sermões sobre a importância de arranjar "um homem" e os mais diversos procedimentos e técnicas para o fazer. Fazia de conta que não percebia que as primas eram pressionadas para lhe apresentarem os amigos dos maridos.

Acima de tudo, preferia não se chatear e tolerava os almoços de família como quem tolera os caprichos de, não um, mas vários tios idosos que acham que sabem como é que todos os outros devem viver a sua vida; e que não vale a pena nem contrariar nem dar importância.

Mas se no princípio, os comentários eram piedosos e relativamente tímidos, com o passar do tempo foram-se tornando mais descarados e agressivos.

"Filha, já não estás em idade de ser esquisita... Olha que não estás a ficar mais nova..."
"Olha que quem muito escolhe, pouco acerta..."

Até que um dia, depois de nascerem os filhos das primas e de alguém lhe dizer o já tradicional "ficavas tão bem com uma coisa dessas nos braços", uma tia idosa colmata com:

"Olha que uma mulher sem filhos, é como uma árvore sem frutos: não tem valor. Mais vale deitar abaixo e vender pela madeira."

Perante este impropério, desferido com naturalidade e uma noção deslocada de que era algo que ela precisava de ouvir, Francisca levantou-se à mesa do almoço, séria e visivelmente furiosa.

A família ficou em silêncio, incluido os bebés, que por algum instinto animal devem ter pressentido o perigo.

Francisca pediu a atenção de todos e anunciou alto e bom som, sem se alterar demasiado, que a família nada tinha a ver com a vida amorosa dela, mas que já que insistiam tanto em tocar no assunto, tinha o prazer de anunciar a todos que a razão pela qual não levava namorados para os almoços de família nem aconselhava a que dela esperassem rebentos era porque ela era lésbica.
Havia anos que gostava de mulheres e tinha várias namoradas, mas tinha sempre achado que seria demasiado chocante para uma família tão religiosa e tradicional levar tal companhia para os convénios do clã, porque, além de tudo, Francisca tinha uma libido estremamente fogosa e lhe era dificil controlar os seus impulsos e demonstrações públicas de afeto quando estava junto das suas amadas.

Perguntou se toda a gente tinha compreendido ou se ainda havia dúvidas ou alguma coisa que quisessem perguntar.

Não tinham.

Sentou-se de novo à mesa e continuou a comer.

O ambiente de choque demorou um pouco a passar, mas a família católica, apostólica romana era antes de mais nada um clã que não expulsa membros. Nunca mais ninguém voltou a tocar no assunto.

Nem a importuná-la com requisitos de casamentos ou crianças.

E finalmente Francisca pode reaver o gosto de estar com a família e conversar com todos sobre os mais diversos assuntos, exceto o novo tabu que ela própria criou nesse dia.

Mesmo se o tabu era mentira e Francisca na verdade não sentia - como nunca tinha sentido - qualquer tipo de atração pelo sexo feminino.

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